Nasci na cidade grande, demorei a
ver uma plantação, tudo que eu via desde a infância foi mar e pesca, não sei
exatamente quando foi que me apaixonei pela terra. Lembro a primeira vez que
fui à serra, um carnaval em Guaramiranga, no Ceará, quando vi cachoeira, mata atlântica, floresta, acredita que tem
tudo isso lá? Até então só conhecia mar e sertão, só conhecia Sol de ferver os
miolos, plantação de palma no solo, terra dura, difícil, mas muitas vezes fértil,
plantações de milho, feijão, mas tudo com aquele ar de desafio, que é plantar
seja no sertão ou perto do mar.
Não consigo recordar exatamente
quando se deu o meu fascínio pelo trabalho de fazer brotar da terra o alimento,
só sei que costumo dizer que, em última instância, isso é para mim, o símbolo
da liberdade: ser capaz de prover o próprio alimento do chão. Se muito de nós
fizermos isso, com o tempo, seremos livres em muitos sentidos. Seremos livres
da cadeia de mercado mais cruel que existe; a indústria química de produção de
agrotóxicos e da modificação genética das sementes, ou seja, a indústria da
transgenia, que são também quem produzem nossas doenças e nossos remédios, são
também os mesmos da indústria bélica, da guerra.
Foi por esse simbolismo
libertário que comecei a viajar, fazer cursos de cultivo de ervas medicinais,
permacultura, educação em permacultura, cidades em transição, bioconstrução,
alimentação natural, etc. Fui lendo diversos manuais, assisti vários vídeos e
documentários, pesquisei sobre agrofloresta, viajei por assentamentos,
trabalhei em projetos, viajei pelas comunidades que faziam essas práticas, reaprendi
a cozinhar, fui a encontros nacionais de comunidades alternativas, comecei a
cultivar no meu quintal, fazer compostagem com o lixo orgânico, levei essas
práticas para algumas escolas e projetos sociais que eu trabalhava, enfim, virei
militante e panfletária de tudo isso.
Fiquei tão envolvida com essas
propostas que comecei a falar disso aos quatro cantos, talvez por isso, até
ganhei o apelido de pachamama ou pati a mama, senhora do meio ambiente, etc. Aprendi
demais com essas experiências, mas a verdade é que hoje me permito ser
contraditória quanto a tudo isso. Já não sou mais radical com o vegetarianismo,
por exemplo, dependendo da situação, como algo que tenha carne sim, voltei a
beber uma cerveja de vez em quando e até coca-cola (não conta pra ninguém, tá? Hahaha).
Creio que nesse tempo de rigidez e posturas radicais eu estava aprendendo e
calcando os meus princípios que são firmes até hoje, mas que não são leis
imperativas e nem preceitos religiosos; eu tenho consciência do meu consumo,
das minhas escolhas, mas devo, sobretudo, agir com liberdade. Nossos princípios
éticos são guias para nosso caminho e não regras que aprisionam nossas ações, não
são bolhas isoladas que construímos, mas sim ideias que nos orientam a agir no
mundo. Se não for assim como seremos verdadeiramente livres?
Um episódio me ajuda a situar o
que de fato estamos fazendo ao propor e fomentar essas novas práticas
sustentáveis: um dia eu conversava com o amigo meu, o Rafael, que trabalhava
comigo numa ONG que tinha a missão de preservar o bioma da caatinga, ele me
disse que nada do que a gente fazia ajudava a resolver os problemas, eu não
discuti e fiquei com aquele comentário dentro de mim, porque eu não concordava,
mas sabia que ali havia alguma verdade, então fui conversar com o professor
Regenaldo da Costa, meu orientador da monografia da graduação, e falei pra ele
isso, que meu amigo havia me dito que nada do que a gente fazia adiantava, o
professor falou que era verdade e que, na real, o que nós estávamos fazendo
trabalhando e fomentando tudo isso era possibilitando a criação de uma nova
cultura; a cultura da sustentabilidade (talvez).
Isso me deu essa nova dimensão,
de que estamos fazendo tudo isso para que essas coisas façam parte da nossa
cultura, de nossos costumes e práticas, que a preservação da natureza seja
parte da cultura das pessoas que habitam os biomas, que o cuidado com o lixo e
o plantio saudável dos alimentos façam parte das nossas instituições e que as
futuras gerações possam dar continuidade. Toda essa luta e esses aprendizados
não podem se transformar em moralismos ou regras de condutas, muito menos em
preceitos religiosos. As coisas precisam ter sentido prático e para
trabalharmos nessa transformação de forma eficiente é preciso que seja leve e
que haja prazer, como já disse uma amiga que parafraseava alguém que não sei: “se
não for divertido não é sustentável”.
E agora vou para outro simbolismo
que me levou a escrever esse texto: a flor da alface. Nesse caminhar comecei a
ministrar oficinas de permacultura, às vezes para crianças e às vezes para
adultos. Geralmente essa oficina começa com uma introdução, um exercício de
planejamento e algumas atividades práticas. Para mim, enquanto educadora, o
momento mais contemplativo é quando as pessoas começam a “ler” a terra, ou
seja, querem saber o nome das plantas, reconhecem outras e dizem “essa aqui
tinha no quintal da minha vó”, “essa é boa para o estômago”, querem saber o que
é mato e o que é uma muda de hortaliça, e perguntam, perguntam, vão
perguntando, “essa aqui é mato?”, “essa aqui pode arrancar ou é alface?”... e de pensar que até o mato mais bobo tem o seu
nome, função ecológica, princípio ativo, e está tudo ali, na terra, para ser
lido, conhecido, aprendido, partilhado e assim, vejo a superfície da terra,
como as páginas do grande livro que Deus escreveu... Ai lindo! Que romântico!
Pois bem, a flor da alface, é uma
das coisas que mais deixam as pessoas surpresas nessa leitura da terra: “e alface
tem flor?” , tem sim, claro! Quando temos uma horta em casa, não é preciso
arrancar todo o pé da alface para fazer uma salada, basta ir arrancando as
folhas de baixo, da mais antiga para as mais recentes, assim, a alface continua
a crescer e dar mais folhas, com o tempo ela começa a pendular, ou seja, um
pendão cresce do centro com lindas flores amarelas que depois se transformam em
florzinhas brancas e felpudas que parecem dente-de-leão em miniatura, essas são
as sementes da alface que no bater do vento se soltam da flor e são carregadas
até a terra e dali, se chove, nascem várias outras mudinhas de alface. É muito
lindo observar esse ciclo e perceber o quanto a vida tende à prosperidade. Esse
é um dos fenômenos que deixam as pessoas mais tocadas quando visitavam a horta
da minha casa.
E nesse sentido, do simbólico e
do poético, vejo que a natureza vai nos revelando os seus saberes, até que a
gente possa se perceber parte dela, sentir o nosso corpo como parte do todo,
como mais um elemento da complexa teia da vida, com a nossa função ecológica de
produtor, consumidor, decompositor; assim como as minhocas, as formigas, os
pássaros, pois mesmo com nossa particularidade de sermos culturais e inventivos,
somos também mais uma sociedade dentre tantas de outras espécies que atuamos
ecologicamente conectados nessa rede complexa de diversidade, de pluralidade na
unidade. A consciência, a criação e a transformação estão nos nossos corpos,
ela está na ação, na materialidade e no movimento do nosso corpo agindo nessa
rede, assim vamos construindo novas
possibilidades culturais para o agora, o futuro próximo e o distante.
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