Thursday, July 10, 2014

A Flor d’alface

 

Nasci na cidade grande, demorei a ver uma plantação, tudo que eu via desde a infância foi mar e pesca, não sei exatamente quando foi que me apaixonei pela terra. Lembro a primeira vez que fui à serra, um carnaval em Guaramiranga, no Ceará, quando vi cachoeira,  mata atlântica, floresta, acredita que tem tudo isso lá? Até então só conhecia mar e sertão, só conhecia Sol de ferver os miolos, plantação de palma no solo, terra dura, difícil, mas muitas vezes fértil, plantações de milho, feijão, mas tudo com aquele ar de desafio, que é plantar seja no sertão ou perto do mar.

Não consigo recordar exatamente quando se deu o meu fascínio pelo trabalho de fazer brotar da terra o alimento, só sei que costumo dizer que, em última instância, isso é para mim, o símbolo da liberdade: ser capaz de prover o próprio alimento do chão. Se muito de nós fizermos isso, com o tempo, seremos livres em muitos sentidos. Seremos livres da cadeia de mercado mais cruel que existe; a indústria química de produção de agrotóxicos e da modificação genética das sementes, ou seja, a indústria da transgenia, que são também quem produzem nossas doenças e nossos remédios, são também os mesmos da indústria bélica, da guerra.

Foi por esse simbolismo libertário que comecei a viajar, fazer cursos de cultivo de ervas medicinais, permacultura, educação em permacultura, cidades em transição, bioconstrução, alimentação natural, etc. Fui lendo diversos manuais, assisti vários vídeos e documentários, pesquisei sobre agrofloresta, viajei por assentamentos, trabalhei em projetos, viajei pelas comunidades que faziam essas práticas, reaprendi a cozinhar, fui a encontros nacionais de comunidades alternativas, comecei a cultivar no meu quintal, fazer compostagem com o lixo orgânico, levei essas práticas para algumas escolas e projetos sociais que eu trabalhava, enfim, virei militante e panfletária de tudo isso.

Fiquei tão envolvida com essas propostas que comecei a falar disso aos quatro cantos, talvez por isso, até ganhei o apelido de pachamama ou pati a mama, senhora do meio ambiente, etc. Aprendi demais com essas experiências, mas a verdade é que hoje me permito ser contraditória quanto a tudo isso. Já não sou mais radical com o vegetarianismo, por exemplo, dependendo da situação, como algo que tenha carne sim, voltei a beber uma cerveja de vez em quando e até coca-cola (não conta pra ninguém, tá? Hahaha). Creio que nesse tempo de rigidez e posturas radicais eu estava aprendendo e calcando os meus princípios que são firmes até hoje, mas que não são leis imperativas e nem preceitos religiosos; eu tenho consciência do meu consumo, das minhas escolhas, mas devo, sobretudo, agir com liberdade. Nossos princípios éticos são guias para nosso caminho e não regras que aprisionam nossas ações, não são bolhas isoladas que construímos, mas sim ideias que nos orientam a agir no mundo. Se não for assim como seremos verdadeiramente livres?

Um episódio me ajuda a situar o que de fato estamos fazendo ao propor e fomentar essas novas práticas sustentáveis: um dia eu conversava com o amigo meu, o Rafael, que trabalhava comigo numa ONG que tinha a missão de preservar o bioma da caatinga, ele me disse que nada do que a gente fazia ajudava a resolver os problemas, eu não discuti e fiquei com aquele comentário dentro de mim, porque eu não concordava, mas sabia que ali havia alguma verdade, então fui conversar com o professor Regenaldo da Costa, meu orientador da monografia da graduação, e falei pra ele isso, que meu amigo havia me dito que nada do que a gente fazia adiantava, o professor falou que era verdade e que, na real, o que nós estávamos fazendo trabalhando e fomentando tudo isso era possibilitando a criação de uma nova cultura; a cultura da sustentabilidade (talvez).

Isso me deu essa nova dimensão, de que estamos fazendo tudo isso para que essas coisas façam parte da nossa cultura, de nossos costumes e práticas, que a preservação da natureza seja parte da cultura das pessoas que habitam os biomas, que o cuidado com o lixo e o plantio saudável dos alimentos façam parte das nossas instituições e que as futuras gerações possam dar continuidade. Toda essa luta e esses aprendizados não podem se transformar em moralismos ou regras de condutas, muito menos em preceitos religiosos. As coisas precisam ter sentido prático e para trabalharmos nessa transformação de forma eficiente é preciso que seja leve e que haja prazer, como já disse uma amiga que parafraseava alguém que não sei: “se não for divertido não é sustentável”.

E agora vou para outro simbolismo que me levou a escrever esse texto: a flor da alface. Nesse caminhar comecei a ministrar oficinas de permacultura, às vezes para crianças e às vezes para adultos. Geralmente essa oficina começa com uma introdução, um exercício de planejamento e algumas atividades práticas. Para mim, enquanto educadora, o momento mais contemplativo é quando as pessoas começam a “ler” a terra, ou seja, querem saber o nome das plantas, reconhecem outras e dizem “essa aqui tinha no quintal da minha vó”, “essa é boa para o estômago”, querem saber o que é mato e o que é uma muda de hortaliça, e perguntam, perguntam, vão perguntando, “essa aqui é mato?”, “essa aqui pode arrancar ou é alface?”...  e de pensar que até o mato mais bobo tem o seu nome, função ecológica, princípio ativo, e está tudo ali, na terra, para ser lido, conhecido, aprendido, partilhado e assim, vejo a superfície da terra, como as páginas do grande livro que Deus escreveu... Ai lindo! Que romântico!

Pois bem, a flor da alface, é uma das coisas que mais deixam as pessoas surpresas nessa leitura da terra: “e alface tem flor?” , tem sim, claro! Quando temos uma horta em casa, não é preciso arrancar todo o pé da alface para fazer uma salada, basta ir arrancando as folhas de baixo, da mais antiga para as mais recentes, assim, a alface continua a crescer e dar mais folhas, com o tempo ela começa a pendular, ou seja, um pendão cresce do centro com lindas flores amarelas que depois se transformam em florzinhas brancas e felpudas que parecem dente-de-leão em miniatura, essas são as sementes da alface que no bater do vento se soltam da flor e são carregadas até a terra e dali, se chove, nascem várias outras mudinhas de alface. É muito lindo observar esse ciclo e perceber o quanto a vida tende à prosperidade. Esse é um dos fenômenos que deixam as pessoas mais tocadas quando visitavam a horta da minha casa.

E nesse sentido, do simbólico e do poético, vejo que a natureza vai nos revelando os seus saberes, até que a gente possa se perceber parte dela, sentir o nosso corpo como parte do todo, como mais um elemento da complexa teia da vida, com a nossa função ecológica de produtor, consumidor, decompositor; assim como as minhocas, as formigas, os pássaros, pois mesmo com nossa particularidade de sermos culturais e inventivos, somos também mais uma sociedade dentre tantas de outras espécies que atuamos ecologicamente conectados nessa rede complexa de diversidade, de pluralidade na unidade. A consciência, a criação e a transformação estão nos nossos corpos, ela está na ação, na materialidade e no movimento do nosso corpo agindo nessa rede, assim vamos  construindo novas possibilidades culturais para o agora, o futuro próximo e o distante.



Thursday, July 03, 2014

Aos pais e mães



 (texto escrito em 2005)

Se eu pudesse, diria o seguinte a todas as mães: sei que não tenho nada a ver com a criação do seu filho, mas se um dia, ao sair de uma apresentação de balet e ele lhe disser “Mãe (ou pai), quero ser bailarino”, acredite, o seu filho fez a verdadeira escolha. Usei este exemplo, pois presenciei esta cena ao sair de um teatro e a voz daquele garoto ecoa na minha cabeça constantemente.

É incrível o papel da arte na vida das pessoas, o quanto as músicas, a literatura, a dança, o cinema, a fotografia nos envolve sentimentalmente e nos causam reflexos nos provocando um pensamento maior quanto a nossa vida nos proporcionando um encontro “cara a cara” com o nosso próprio eu.

O encontro com o “próprio eu”, muitas vezes, nos faz chorar e baixar a cabeça diante se si mesmo, pois se trata da prestação de contas mais dolorosa, a prestação de conta consigo mesmo. Não dá para mentir, para maquiar a realidade. É quando a sua própria voz lhe diz a verdade utilizando da sua própria honestidade e do seu senso crítico. A arte pode proporcionar isso.

Nunca se deve abrir mão de ser a pessoa que é. Não se deve desviar as virtudes e até mesmo os defeitos. Estes últimos devem ser moldados de acordo com a realidade, de maneira sóbria e não apenas escondido com uma máscara. É muito fácil agradar aos outros e ser aceito, mostrar-se conveniente à família e à sociedade, acontece que esta conveniência deve ser conivente à própria personalidade, aos gostos e anseios. Não se pode pisar ou ignorar a si mesmo só para parecer adequado.

E eu diria mais à todos aqueles que são pais: se ontem seu filho quis ser bailarino e hoje ele resolveu que quer ser bombeiro, acredite novamente que esta foi a decisão correta, isso é sinal de que ele está crescendo e se conhecendo ainda mais, isso significa que sua personalidade está fluindo e consequentemente evoluindo. Nunca reprima um sonho de alguém.

Se sua filha prefere tênis e calça jeans a um vestido rodado com fitas de cetim, sinta-se orgulhoso, isso é sinal de que ela é inteligente e não abre mão do bem estar por motivos fúteis ou meras aparências. Os pais devem perder a mania de mostrar os filhos como se fossem uma escultura perfeita, pois a perfeição numa relação é a felicidade, a simplicidade e a satisfação. Isso é imprescindível.

Encontro-me, hoje, em um momento da vida em que me vejo sem orientação, como se fosse uma sonâmbula que saiu da cama e caminhou durante horas na rua e ao acordar não sabe onde está. Parece que vivo a realização dos meus sonhos, porém estes sonhos são antigos e não me servem mais. Hoje tenho outros sonhos.
Será que o ideal é sonhar algo impossível para que sempre tenhamos uma direção a seguir?

Fiz muito para agradar alguém que um dia fiz sofrer. Hoje continuou errando, continuou tão ruim quanto no passado, mas agora é pior, pois esqueci de mim. Não consigo mais lembrar quem eu sou, do que gosto e o que quero ser. Lembro-me vagamente de certas coisas no passado. Mas tenho a sensação de que esqueci do principal, como se fosse falar algo de importante e esquecesse em seguida. Esqueci de ser feliz acima de tudo, esqueci quem eu sou realmente.

Não busco dinheiro, busco felicidade. Não faço tudo por dinheiro e nem por status. Não tenho medo de morrer, mas morro de medo de não viver.

Dizem que os meus desejos são utópicos, isso me causa medo, mas ao mesmo tempo me motiva. Adoro adrenalina, magia e utopia.